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O Concerto Europeu

Este texto foi escrito tendo como base o livro História das Relações Internacionais Contemporâneas cujo organizador foi o professor José Flávio Sombra Saraiva, livro que traz especialistas em História das Relações Internacionais e que eu julgo didático, crítico e bem escrito, características, aliás que eu não tive pretensão de copiar.


Após a tentativa fracassada de Napoleão Bonaparte levar os princípios da revolução francesa por meio do exército para outras regiões da Europa, as potências vencedoras temorosas do surgimento de outra hegemonia no continente organizaram, no congresso de Viena (1815), um concerto entre si para reordenar as relações internacionais. O arranjo diplomático europeu diz respeito a um conjunto de regras, normas e padrões de comportamento comuns entre as potências que teve desdobramentos nas relações intra e extra europeias.

A idade média tinha como traço fundamental a ideia de cristandade que determinava conceitos e práticas de governo e de autoridade política. A renascença, por sua vez, fez avançar a cidade estado, a república e a concentração de poder no príncipe, além de ter introduzido mudanças no que diz respeito ao papel dos progressos técnicos na arte da guerra e a criação de um exército profissional de mercenários elementos que contribuíram para uma mudança nas forças profundas da Europa.

O fim da renascença e das reformas religiosas promoveram a fragmentação da ideia de cristandade europeia da idade média e com isso, a busca por coalizões anti-hegemônicas. Na Europa os Habsburgos herdeiros do Sacro Império Romano Germânico catalisavam a noção de hegemonia. O século XVII marcou um relevante avanço conceitual uma vez que a paz de Vestfália (1648) estabeleceu uma ordem internacional de estados soberanos e os tratados de Ultrecht de (1713-1715) iniciaram uma ordem pautada pela balança de poder na Europa e pela predominância do capitalismo inglês.

A rigor o Congresso de Viena se desdobrou em duas vertentes a Santa Aliança de cunho reacionário formado por Áustria, Prússia e Rússia e a Quádrupla Aliança formada por aqueles mais o Império Britânico. Convém perceber que, no longo prazo, os interesses das alianças eram conflitantes entre si. Como exemplo, podemos citar a rivalidade histórica entre Império Britânico e Império Czarista Russo.

Existem três princípios importantes que nortearam o Congresso de Viena. O primeiro era o princípio da legitimidade que consistia em restituir ao poder as autoridades anteriores à expansão napoleônica contendo assim as ideias revolucionárias. O segundo princípio era o de entendimento entre os grandes para manter a paz a construir a nova ordem o que na prática equivalia a intervenções concertadas pelo consenso das nações mais fortes para evitar conflitos em grande escala e preservar a balança de poder e,por último, o princípio da compensação e do equilíbrio entre as potências que visava evitar a emergência de um novo hegemon no continente.

Havia claramente, entre as potências, diferenças que foram resolvidas com base no equilíbrio de poder e no pragmatismo. A distinção entre potências conservadoras (Aústria, Rússia e Prússia) e liberais (Inglaterra e França) não é o bastante para explicar o momento histórico. Por exemplo, à noção de Santa Aliança que visava reavivar a ideia de cristandade europeia que datava da idade média foi obstacularizada pela Inglaterra que preferiu formar uma quádrupla aliança com aquelas potências e mais tarde incluir a França pelo bem do equilíbrio de poder. Mesmo o avanço de ideias liberais em Portugal e Espanha foram apoiadas pela Inglaterra e pela França, porém sem muito entusiasmo, no que tange à não intervenção pelas potências conservadoras houve relativo acordo; preservou-se as independências latino americanas da mesma forma que governos monárquicos retornaram ao poder na Europa. O que caracterizou a ordem de Viena, portanto, foi o exercício da hegemonia coletiva.

Porém, três fatores tiveram peso para a transformação da ordem de Viena. O primeiro deles foi a Guerra da Criméia (1851) em que as potências garantes do sistema europeu de balança de poder entraram em conflito direto. Os antecedentes foram as pretensões da Rússia em ampliar sua influência no estreito de Bósforo e Dardanelos com isso enfraquecer o império otomano. O Czar russo em um erro de cálculo não acreditava que a Inglaterra iria se sentir ameaçada, mas a reação do governo inglês foi de declarar guerra em nome da livre navegação dos mares. Este conflito marca a primeira fenda que se abriu no sistema europeu do concerto de Viena. Os outros dois seriam a unificação italiana e a unificação alemã (1871) dois movimentos de construção de estados nações que, uma vez consolidado, colocaria o exercício da hegemonia coletiva em xeque. A eclosão da I Guerra Mundial irá marcar o declínio da ordem de Viena que como projeto de arquitetura diplomática conseguiu garantir período de paz entre os europeus abrindo espaço para o seu desenvolvimento o que os capacitou de certa vantagem frente à outros povos.

A escola inglesa em sua contribuição para a teoria de relações internacionais diferencia sistema internacional de sociedade internacional. Sistema internacional corresponde à interação econômica, política e estratégica entre estados-agentes, os quais, ao guiarem se pelos interesses próprios, dependem um dos outros para atingir seus fins externos. Cada sistema fixa regras, instituições e valores comuns, que servem de veículos e parâmetros para a ação e condicionam a conduta dos estados membros. Em dado momento da evolução de um sistema para a maturidade, atinge-se o estágio da sociedade internacional. A sociedade internacional é composta de dois elementos: elementos derivados de princípios e práticas específico da política internacional e a cultura comum que lhes dá organicidade.

A Europa conseguiu criar uma sociedade internacional que se expandiu em um sistema internacional planetário. O domínio europeu na ordem internacional cessou em 1945 com a emergência de outra ordem, mas como processo histórico em várias dimensões a ordem atual é tributária da ordem precedente contendo alguns dos elementos da velha ordem e elaborando outros ou pelo menos tentando.

O mundo e a expansão europeia

A América Latina durante o século XIX encontrava-se, em relação aos interesses das grandes potências europeias, em posição de baixa importância estratégica o que fez com essa região ingressasse à economia internacional pela via do liberalismo comercial da fase capitalista da revolução industrial. Aliás, essa foi a tendência dominante da expansão europeia para fora de si mesma. Os tratados desiguais implantados na America Latina serviram de modelo para outras regiões e moldaram a forma de relação que se estabeleceria entre a Europa e outros continentes.

Apogeu e colapso do sistema internacional europeu.

As forças profundas que permitem compreender a eclosão da primeira guerra mundial são variadas, mas há relativo consenso histórico de que a diplomacia secreta, o nacionalismo e o imperialismo europeu tiveram papel relevante para inteligibilidade do período.

O edifício vienense começa a ruir a partir da Guerra da Criméia. Como no longo prazo os interesses das potências que conduziram o concerto europeu eram opostos (uma vez que Inglaterra e França eram liberais e Rússia, Prússia e Áustria, conservadoras) em 1914 os estados já estavam discretamente posicionados no lado mais conveniente. Isto só foi possível, por causa da diplomacia secreta que imperou como prática entre os estados e como tal pode ser apresentada como uma das causas da Primeira Guerra.

Além disso, outro  elemento que indica rachadura no sistema internacional europeu do congresso de Viena é, sem dúvida, a unificação da Alemanha na forma de império que a partir daí passaria a por em xeque o e equilíbrio europeu. O receio do domínio alemão no continente europeu foi o suficiente para colocar em campos comuns Inglaterra, França e Rússia (Tríplice Entente); em oposição à Alemanha, Áustria-Hungria e Itália (Tríplice Aliança).

O poder explanatório do nacionalismo quanto aos desdobramentos dos acontecimentos na Europa do século XIX divide-se em pelo menos duas vertentes: a primeira é que o nacionalismo durante o século XVIII foi um força revolucionária para a eliminação da aristocracia na Europa aliada a criação e construção dos Estados nação, posteriormente, a partir da segunda metade do século XIX, mais especificamente 1870, o nacionalismo passou a ser uma força patriótica destituída do seu elemento democrático que visava à autodeterminação dos povos, para uma ideologia de afirmação nacional.

Em âmbito mundial o período entre 1871 e 1914 caracteriza-se pelo apogeu da hegemonia global do sistema europeu. O imperialismo forçou a entrada no sistema europeu daquelas regiões que ainda estavam fora completando a construção da rede global de relações econômicas, políticas e estratégicas que foram dominadas pelos principais estados europeus. Simultaneamente, os limites ao poderio europeu já se delineavam no cenário internacional. Os EUA uma vez terminada a sua guerra civil em 1860 iria rapidamente se alçar a condição de potência mundial embora isso só tenha sido reconhecido após a I Guerra Mundial. Na Ásia a restauração Meiji determinava a transformação de uma nação agro-feudal em uma potência industrial no começo do século XX.


Vladimir Lenin, dentro de da abordagem do marxismo clássico, contribui para a teoria das relações internacional com o seu livro “Imperialismo: fase superior do capitalismo” (1917) na medida em que explicou como a competição imperialista entre os europeus geraria, pela fusão do capital bancário com o industrial, uma oligarquia financeira que dividiria o mundo entre si. Do outro lado do espectro político Joseph Schumpeter iria dizer que o imperialismo europeu do século XIX era uma herança atávica do colonialismo do século XVI. Em ambos os casos , no entanto, a constatação de que o fenômeno do imperialismo engendrou e intensificou o quadro de competição europeia que antecedeu a I Guerra Mundial é indiscutível.

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