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Direito das Gentes - Emmer de Vattel



          Diplomata, filósofo e político Emmer de Vattel nasceu na Suiça em 1714 e aí morreu de edema em 1767 com 53 anos. Na universidade da Basiléia e de Genebra teve contato com os pensadores do Iluminismo dentre os quais foi fortemente influenciado por Christian Wolff e Leibniz.

          A obra Droit des gents ou Principes de la loi naturelle appliqués à la conduite et aux affaires des nations et des souverains, veio a lume em 1758 e rapidamente foi reconhecida como um livro singular.À época de sua públicação a obra não possuía por assim dizer fontes positivas do direito daí a forte presença, expressa no subtítulo, do direito natural. 

         Cronologica e filosoficamente Vattel foi antecedido por Francisco de Vitória, Francisco Suarez, Alberto Gentili,Samuel Puffendorf e Hugo Grócio mas ele inova quando dá centralidade ao conceito de soberania estatal como elemento definidor do direito internacional clássico e também em temas que não foram abordados pelos precursores da ciência como os domínios patrimoniais, o uso das armas envenenadas, bens culturais, humanização da guerra, imunidade diplomática entre outras.

           A força desse clássico reside nas ideias dos federalistas Alexander Hamilton, Thomas Jefferson e James Madison além de ter servido aos interesses nacionais quando da defesa das fronteiras das Guianas Britânicas e Francesas feita pelo barão do Rio Branco.

      Preliminares

Ideia e princípios gerais do direito das gentes

§1°: A NAÇÃO OU UM ESTADO: As Nações ou Estados são corpos políticos, sociedades de homens unidos em conjunto e de forças solidárias, com o objetivo de alcançar segurança e vantagem comuns.

§2°: A PESSOA JURÍDICA: Semelhante sociedade tem suas próprias atividades e interesses; ela delibera e toma decisões em comum e com isso se torna uma pessoa jurídica que tem entendimento e vontade próprios, e que é capaz de obrigações e de direitos.

§3°: DEFINIÇÃO DO DIREITO DAS GENTES: O objetivo desta obra é estabelecer solidamente as obrigações e os direitos das Nações. O direito das gentes é a ciência do direito que tem lugar entre Nações ou Estados, assim como das obrigações correspondentes a esse direito.

Será visto neste tratado de que maneira os Estados, como tais, devem regular as suas atividades. Avaliaremos as obrigações de um povo para consigo mesmo e para com os demais, e, desse modo, consideraremos os direitos resultantes dessas obrigações. Pois não sendo o direito senão a faculdade de fazer o que é moralmente possível, ou seja, o que é bom em si, o que é conforme ao dever, é evidente que o direito nasce do dever, ou da obrigação passiva, da obrigação de agir desta ou daquela maneira. É pois necessário que uma Nação conheça as suas obrigações, não somente para evitar transgredir os seus deveres, mas também para conhecer com precisão os seus direitos, ou aquilo que possa legitimamente dos outros exigir.

§4°: COMO SE CONSIDERAM AS NAÇÕES OU ESTADOS: Desde que as Nações são compostas de homens, que por natureza são livres e independentes, e que antes do estabelecimento das sociedades civis viviam juntos no estado de natureza, as Nações ou Estados soberanos devem ser considerados também como pessoas livres que vivem juntas em estado de natureza.

Prova-se em direito natural que todos os homens recebem da natureza uma liberdade e uma independência que não podem perder senão por consentimento deles próprios. Desse direito os cidadãos não usufruem plena e absolutamente no Estado porque eles o submeteram em parte ao soberano; mas o corpo da Nação, o Estado, desde que não esteja voluntariamente submetido a outras Nações, permanece absolutamente livre e independente em relação a todos os demais homens e Nações estrangeiras.

§5°: A QUE LEIS AS NAÇÕES ESTÃO SUBMETIDAS: Como os homens estão submetidos às leis da natureza, e a união deles em sociedade civil não pode eximi-los da obrigação de observar essas leis, porquanto nesta união eles permanecem homens, a Nação inteira, cuja vontade comum não é senão o resultado das vontades reunidas dos cidadãos, permanece submetida às leis da natureza, obrigada a respeitá-las em todos os seus atos. E desde que o direito nasce da obrigação, como havíamos visto (§3°), a Nação tem também os mesmos direitos que a natureza dá aos homens para desobrigarem-se de seus deveres.

§6°: A ORIGEM DO DIREITO DAS GENTES: É, preciso, pois, aplicar às Nações as regras do direito natural, para descobrir quais são os direitos e obrigações que lhes dizem respeito. Portanto, o direito das gentes não é originariamente senão o direito da natureza aplicado às Nações. Mas como a aplicação de uma regra não pode ser justa e razoável se não se fizer de maneira adequada, não se deve acreditar que o direito das gentes seja precisamente em todos os lugares o mesmo que o direito natural, de modo que bastaria substituir Nações aos particulares.

Uma sociedade civil, um Estado, difere bastante do ser humano: donde resulta, em virtude das próprias leis naturais serem direitos e obrigações muito diferentes em diversos casos; a mesma regra geral, quando aplicada em dois casos diferentes, pode não resultar em decisões similares; nem uma regra particular muito justa para um caso é aplicável a outro caso de natureza diferente. Há, pois, casos em que a lei natural não regula as relações entre os Estados, como ela o faria em casos individuais. É preciso saber como aplicá-la, com uma adequação ajustada aos sujeitos; e é a arte de aplicá-la assim, com uma precisão baseada na reta razão, que faz do direito das gentes uma ciência particular.

§7°: DEFINIÇÃO DO DIREITO DAS GENTES NECESSÁRIO: Usamos o termo direito das gentes necessário para aquele direito das gentes que consiste na aplicação do direito natural às Nações. Ele é necessário porque as Nações são absolutamente obrigadas a respeitá-lo. Esse direito contém os preceitos que a lei natural confere aos Estados, os quais não estão menos obrigados a ela que os particulares, porque os Estados são compostos de homens e as deliberações são tomadas por homens e porque a lei da natureza obriga todos os homens a terem capacidade para agir. É esse mesmo direito que Grócio e seus seguidores chamam de direito das gentes interno, à medida que obriga as Nações em consciência. Muitos escritores o designam também de direito das gentes natural.

§8°: ELE É MUTÁVEL:  Sendo assim, o direito das gentes necessário consiste em aplicar o direito natural aos Estados, e desde que o direito natural é imutável por estar baseado na natureza das causas e particularmente na natureza do homem, conclui-se que o direito das gentes necessário é imutável.

§9°: AS NAÇÕES  NÃO PODEM MUDAR O DIREITO DAS GENTES NECESSÁRIO NEM SE EXIMIR DA OBRIGAÇÃO QUE ELE LHES IMPÕE: Desde que esse direito é imutável e as obrigações que ele impõe são necessárias e indispensáveis, as Nações não podem alterá-lo por acordo, nem dele se eximir por elas próprias ou por via de reciprocidade.

Eis aqui o princípio pelo qual pode-se distinguir os tratados ou convenções legítimos daqueles que o não são, e os costumes inocentes e razoáveis daqueles que são injustos ou passíveis de condenação.

Existem cousas justas e permitidas pelo direito das gentes necessário, que as Nações podem convencionar mutuamente ou que podem consagrar e fortificar pelos usos e costumes. Existem cousas indiferentes sobre as quais os povos podem entender-se como quiserem, por meio de tratados ou pela introdução de costumes ou usos que considerem adequados. Mas todos os tratados e costumes contrários aos prescritos pelo direito das gentes necessário são ilegítimos. Veremos, no entanto, que eles nem sempre estão de acordo com o direito interno, ou de consciência, e mesmo assim, por razões dadas em seu próprio lugar, tais convenções e tratados não deixam de ser freqüentemente válidos de acordo com o direito externo. Sendo as Nações livres e independentes, são elas obrigadas a se conformar com as ações de uma delas, embora ilegítimas e condenáveis segundo as leis da consciência, desde que estas ações não infrinjam direitos perfeitos das mesmas. A liberdade dessa Nação não permaneceria completa se as demais Nações se arrogassem o direito de inspecionar-lhe a conduta:o que seria contrário à lei natural, que declara toda Nação livre e independente das demais.

§10°: DA SOCIEDADE ESTABELECIDA PELA NATUREZA ENTRE  TODOS OS HOMENS: O homem é de tal natureza que não pode bastar-se a si próprio e tem necessidade do socorro e do convívio de seus semelhantes, seja para preservar-se, seja para aperfeiçoar-se e viver como convém a um animal racional.

A experiência mostra isto suficientemente. Há exemplos de homens nutridos entre ursos, os quais não tinham nem a linguagem nem o uso da razão, e limitados como bestas ao uso de faculdades sensitivas. Observamos também que a natureza recusou aos homens a força e as armas naturais com as quais ela beneficiou outros animais, mas os deu as vantagens da palavra e da razão, ou pelo menos, a faculdade de adquiri-las ao interagir com outros homens. A linguagem lhes permite comunicarem-se entre si, ajudarem-se mutuamente, aperfeiçoarem a razão e os conhecimentos; e tornados assim inteligentes, os homens encontram mil maneiras de se conservar e de dar provimento às suas necessidades. Cada homem conclui que não poderia viver feliz ou melhorar a sua condição sem a ajuda e o convívio dos demais. E desde que a natureza assim os fez, é indício manifesto que ela os destina a conviverem juntos, a se auxiliarem e se socorrerem mutuamente.

Eis de onde se deduz a sociedade natural estabelecida entre todos os homens. A lei geral dessa sociedade é que cada qual faça para os outros tudo o de que necessitem, e que possa fazê-lo sem negligenciar o que deve a si mesmo: lei que todos os homens devem observar, para viverem convenientemente com a sua natureza e para se conformarem com os desígnios de seu criador comum; lei que nossa própria salvação, nossa felicidade, nossas vantagens mais preciosas devem tornar sagrada para cada um de nós.Tal é a obrigação geral que nos prende ao cumprimento de nossos deveres; tratemos de cumpri-los com zelo, se quisermos trabalhar para o nosso bem maior.

É fácil sentir quanto o mundo seria feliz se todos os homens quisessem observar a regra que acabamos de estabelecer. Ao contrário, se cada homem não quiser pensar senão única e imediatamente em si próprio, se nada fizer para os demais, todos em conjunto seriam muito infelizes. Trabalhemos, pois, para a felicidade de todos; todos trabalharão para a nossa, e estabeleceremos nossa felicidade sobre os mais sólidos fundamentos.

§11: E ENTRE AS NAÇÕES: Desde que a sociedade universal do gênero humano é uma instituição da própria natureza, isto é, uma conseqüência necessária da natureza do homem, todos os homens em qualquer condição são obrigados a dedicar-se a essa sociedade e a cumprir-lhe os deveres. Nenhuma convenção ou acordo particular podem dispensá-los desses deveres. Quando, pois, os homens se unem em sociedade civil para formar determinado Estado ou Nação, eles podem assumir compromissos particulares com aqueles a que se associem; mas suas obrigações para com o resto do gênero humano permanecem imutáveis. Toda a diferença consiste em que tendo acordado agirem em comum, e tendo transferido seus direitos e submetido a sua vontade ao corpo da sociedade em tudo o que interesse ao bem comum, compete doravante a esse corpo, ao Estado e a seus dirigentes cumprirem os deveres de humanidade para com os estrangeiros, em tudo quanto não mais dependa da liberdade dos particulares, e cabe ao Estado em especial cumprir esses deveres para com outros Estados. Vimos (§8°) que os homens, quando unidos em sociedade, permanecem submetidos às obrigações que a natureza humana lhes impõe. Esta sociedade pode ser vista como uma pessoa jurídica, porque ela tem um entendimento, uma vontade e um poder que lhe são próprios. Ela é pois obrigada a viver com outras sociedades ou Estados, como um homem era obrigado, antes do estabelecimento do Estado, a viver com os demais homens, isto é, em conformidade com as leis da sociedade natural estabelecida para o gênero humano, observadas as exceções que possam nascer da diferença de matérias.

§12: O LIMITE DA SOCIEDADE DE NAÇÕES: O fim da sociedade natural estabelecida entre todos os homens é o de que se prestem assistência mútua para alcançar a própria perfeição e a do seu estado; e as Nações, tanto quanto pessoas livres vivendo juntas em um estado natural, são obrigadas a cultivar entre si essa sociedade humana. O fim da grande sociedade estabelecida pela natureza entre todas as Nações é também
o de uma assistência mútua para que elas próprias se aperfeiçoem.

§13: A OBRIGAÇÃO GERAL QUE ESSA SOCIEDADE IMPÕE: A primeira lei geral, que o fim mesmo da sociedade das Nações nos revela é que cada Nação deverá contribuir, tanto quanto puder, para a felicidade e o aperfeiçoamento de outras Nações.

§14: A EXPLICAÇÃO DESTA OBRIGAÇÃO : Desde que os deveres de uma Nação para consigo mesma incontestavelmente prevalecem sobre os deveres para com terceiros, uma Nação deve a si mesma, em primeiro lugar e preferencialmente, fazer tudo o que puder para sua própria felicidade e perfeição. (Digo o que ela pode, não apenas fisicamente, mas também moralmente, ou seja, o que ela pode fazer legitimamente, com justiça e honestidade). Quando, pois, ela não pode contribuir para o bem de outra sem prejudicar essencialmente a si própria, a sua obrigação cessa neste caso particular, e a Nação é considerada na impossibilidade de cumprir essa obrigação.

§15: LIBERDADE INDEPENDÊNCIA DAS NAÇÕES: SEGUNDA LEI GERAL: Desde que as Nações são livres e independentes umas das outras, como os homens o são por natureza, a segunda lei geral das sociedades das Nações é que cada Nação deve ser deixada no gozo pacífico da liberdade que ela recebeu da natureza.
A sociedade natural das Nações não pode subsistir sem que os direitos que pertencem a cada qual sejam respeitados. Nenhuma Nação quer renunciar à sua liberdade; ela irá mesmo romper toda relação com aquela que tentar cerceá-la nesse direito.

§16: EFEITO DESSA LIBERDADE: Em conseqüência dessa liberdade e independência, conclui-se que cabe a cada Nação decidir o que a consciência dela exige, o que ela pode ou não, o que ela acha melhor fazer ou não fazer; e por conseguinte examinar e decidir que obrigações ela pode cumprir para com outras sem faltar ao dever para consigo mesma. Em todos os casos, cabe a uma Nação julgar a extensão de suas obrigações, nenhuma outra Nação pode forçá-la a agir de um jeito ou de outro. Pois se ela o fizesse, atentaria contra a liberdade das Nações. Não devemos usar da força contra uma pessoa livre, exceto em casos em que esta pessoa esteja obrigada para conosco num caso particular, por uma razão particular, que não depende de seu julgamento; a não ser em uma palavra, nos casos em que tivermos um direito perfeito contra ela.

§17: DISTINÇÕES DA OBRIGAÇÃO E DO DIREITO INTERNO E EXTERNO, PERFEITO E IMPERFEITO: Para bem entender isso é necessário notar que a obrigação corresponde a determinado direito. A obrigação e o direito distinguem-se em interno e externo. A obrigação é interna enquanto vincula a consciência, é deduzida de regras de nosso dever; ela é externa quando considerada em relação a outros homens e produza certos direitos entre eles. A obrigação interna é sempre da mesma natureza, apesar de variar em graus; a obrigação externa, no entanto, é dividida entre perfeita e imperfeita e o direito que ela produz é igualmente perfeito e imperfeito. O direito perfeito é aquele que carrega consigo o direito de compelir os que não queiram cumprir as obrigações que lhes correspondem; e o direito imperfeito é aquele que não é acompanhado desse direito de coerção. A obrigação é a que produz o direito de coerção; a imperfeita confere a outrem apenas o direito de petição.

Agora ficará finalmente compreensível por que o direito é sempre imperfeito quando a obrigação correspondente depende do julgamento daquele que detém essa obrigação. Porque se, neste caso, tivéssemos o direito de constrangê-lo, não mais dependeria dele decidir o que lhe incumbiria fazer para obedecer às leis de sua consciência. Nossa obrigação para com os outros é sempre imperfeita quando nos cabe o julgamento sobre o que devemos fazer; e esse julgamento nos compete em todas as ocasiões em que devemos ser livres.

§18: IGUAlDADE DAS NAÇÕES:  Desde que os homens são iguais por natureza, e suas obrigações e direitos são os mesmos, como provenientes igualmente da natureza, as Nações compostas de homens, consideradas como pessoas livres que vivem juntas num estado natural, são por natureza iguais e recebem da natureza as mesmas obrigações e os mesmos direitos. O poder ou a fraqueza não acarretam a esse respeito nenhuma diferença. Um anão é tão homem quanto um gigante: uma república pequena não é menos um Estado soberano do que o mais poderoso dos reinos.

§19: CONSEQÜÊNCIA DESSA IGUALDADE: Como decorrência dessa igualdade, o que se permite a uma Nação se permite também às demais e o que não se permite a uma também não se permite às demais.

§20: CADA NAÇÃO É DONA DE SUAS AÇÕES  COM RESERVAS: Uma Nação é, no entanto, livre para agir como lhe convenha, desde que seus atos não atinjam os direitos perfeitos de outra Nação e desde que ela se vincula somente a uma obrigação interna, sem nenhuma obrigação_externa perfeita. Se a Nação abusar de sua liberdade, ela age erradamente; mas as demais Nações devem disso ressentir-se, sem terem direito de exercer comando sobre ela.

§21: FUNDAMENTO DO DIREITO DAS GENTES VOLUNTÁRIO: Desde que as Nações são livres, independentes e iguais, e desde que cada qual tem o direito de decidir em sua própria consciência o que deve fazer para cumprir as suas obrigações, o efeito disto é produzir, pelo menos exteriormente e entre os homens, uma igualdade perfeita de direitos entre as Nações na administração de seus negócios e na busca de suas pretensões. A justiça intrínseca da conduta delas, não compete às demais julgar definitivamente; destarte, o que se permite a uma, a outra é também permitido, e elas devem ser consideradas na sociedade humana como tendo direitos iguais.

Cada Nação pretende ter a justiça de seu lado nas controvérsias que possam surgir; e não compete a nenhuma das partes interessadas, nem às demais Nações, julgar a questão. Aquela que estiver errada peca contra a sua consciência; mas como pode ocorrer que ela tenha direito não se pode acusá-la de violar as leis da sociedade.

É pois necessário, em muitas ocasiões, que as Nações padeçam de certos fatos, conquanto injustos e condenáveis em si próprios, porque elas não poderiam a eles opor-se pela força sem transgredir a liberdade de cada uma delas e sem destruir os fundamentos da sociedade natural de todas. E desde que elas sejam obrigadas a cultivar esta sociedade, presume-se de direito que todas as Nações concordaram  com o princípio que acabamos de estabelecer. As regras que daí decorrem formam o que Wolff denomina de direito das gentes voluntário; e nada impede que usemos do mesmo termo, ainda que nos afastemos desse homem qualificado, na maneira de estabelecer o fundamento desse direito.

§22: DIREITO DAS NAÇÕES CONTRA OS INFRATORES DO DIREITO DAS GENTES: As leis da sociedade natural são de tal importância para a salvação de todos os Estados que se fossem aniquiladas, nenhum povo poderia vangloriar-se de permanecer tranqüilo, mesmo que medidas de sabedoria, de justiça e de moderação pudessem ser tomadas. Ora, todos os homens e todos os Estados têm um direito perfeito às cousas sem as quais não poderiam sobreviver porque esse direito corresponde a uma obrigação indeclinável. Logo, todas as Nações estão no direito de reprimir pela força aquela que viole abertamente as leis da sociedade que a natureza entre elas estabeleceu, ou que ataque diretamente o bem e a sobrevivência dessa sociedade.

§23: A REGRA DESSE DIREITO: Porém, é preciso tomar o cuidado de não estender esse direito em prejuízo da liberdade das Nações. Todas são livres e independentes, mas obrigadas a observar as leis da sociedade que a natureza estabeleceu entre elas, e são de tal modo obrigadas que se uma Nação viola essas leis as demais têm o direito de reprimir a Nação transgressora: todas em conjunto não têm" pois, nenhum direito sobre a conduta de cada qual a não ser que haja interesse da sociedade natural. O direito geral e comum das Nações sobre o comportamento de cada Estado soberano deve ser mensurado segundo a finalidade da sociedade que entre elas exista.

§24: DIREITO DAS GENTES CONVENCIONAL OU DIREITO DOS TRATADOS: OS diversos compromissos que as Nações podem assumir produzem uma nova espécie de direito das gentes que se chama comenaonal, ou dos tratados. Pelo fato de ser evidente que um tratado não obriga senão as partes contratantes, o direito das gentes convencional  não é um direito universal, mas um direito particular. O que se pode fazer sobre essa matéria num tratado do direito das gentes é dar as regras gerais que as Nações devem observar com relação aos seus tratados. Pormenor sobre os diferentes acordos celebrados por determinadas Nações assim como direitos e obrigações que deles resultem são matéria de fato e pertencentes à história.

§25: DIREITO DAS GENTES COSTUMEIRO: Certos princípios, certas práticas, consagrados por uso prolongado e que as Nações observam entre si como uma espécie de direito constituem o direito das gentes costumeiro ou o costume das Nações. Esse direito se fundamenta no consentimento tácito ou, se se preferir, numa convenção tácita das Nações que o observam entre si. Portanto, parece que esse direito obriga apenas as Nações que o adotaram e que não é universal, não mais que o direito convencional. Desse direito costumeiro é preciso ainda dizer que o pormenor não pertence a um tratado sistemático do direito das gentes, mas que devemos nos limitar a dar-lhe uma teoria geral, isto é, as regras a serem observadas tanto em relação aos efeitos quanto em relação à matéria mesma; e sob esse aspecto, essas regras servirão a distinguir os costumes legítimos e inócuos dos costumes injustos e ilícitos.

§26: REGRA GERAL SOBRE ESSE DIREITO: Quando um costume, um uso, é geralmente estabelecido, seja entre todas as Nações civilizadas do mundo, seja apenas entre as de determinado continente, da Europa por exemplo, ou aquelas que têm em conjunto um comércio mais freqüente; se esse costume é indiferente em si mesmo e com mais razão, se for útil e razoável, ele se torna obrigatório para todas essas Nações, que são consideradas ter-lhe dado consentimento; e elas são obrigadas a respeitá-lo nas relações recíprocas, pelo menos enquanto não tiverem declarado expressamente desejar não cumpri-lo. Mas se esse costume encerra algo de injusto ou ilicito, ele é desprovido de força; nesse caso, toda Nação é obrigada a abandoná-lo, nada podendo obrigá-la a violar a lei natural ou permitir-lhe que a viole.

§27: DIREITO DAS GENTES POSITIVO: Essas três espécies de direito das gentes, voluntário, convencional e costumeiro, compõem em conjunto o direito das gentes positivo pois todas essas modalidades procedem da vontade das Nações; o direito voluntário, de consentimento presumido;
o direito convencional, de consentimento expresso; e o direito costumeiro, de consentimento tácito. Como não pode haver outra maneira de deduzir algum direito da vontade das Nações, não há senão três espécies de direito das gentes positivo.

Teremos cuidado de distingui-los cuidadosamente do direito das gentes natural ou necessário, sem no entanto tratá-los isoladamente. Mas após ter estabelecido em cada matéria o que o direito necessário prescreve, acrescentaremos imediatamente como e porque é preciso modificar-lhe as decisões pelo direito uoluntário »: em outros termos, explicaremos como, em virtude da liberdade das Nações e das regras da sociedade natural delas, o direito externo, que deve ser observado entre elas, difere em parte dos princípios do direito interno, sempre obrigatórios porém na consciência. Quanto aos direitos introduzidos por tratados ou costume, não se deve temer sejam eles confundidos com o direito das gentes natural. Eles formam essa espécie de direito das gentes que os autores chamam arbitrário.

§28: PRINCÍPIO GERAL SOBRE O USO DO DIREITO NECESSÁRIO E DO DIREITO VOLUNTÁRIO: Para dar, desde agora, esclarecimento geral sobre a distinção entre direito necessário e direito voluntário, observemos que o direito necessário, sendo sempre obrigatório na consciência, uma Nação não deve jamais perdê-lo de vista, quando deliberar sobre decisão a tomar em consonância com seu dever; mas quando examinar o que ela pode exigir dos demais Estados, ela deve consultar o direito voluntário  cujos princípios são consagrados à preservação e conveniência da sociedade universal.

         Após a exposição dos princípios gerais o Livro I fará uma analise  dos elementos da Nação considerada em si mesma. 

           O que salta às vistas é a preocupação em definir os deveres da nação para consigo mesma e atestar que a nação deve, antes de tudo, buscar sua auto conservação e a de seus membros tendo direito a tudo que for necessário para este fim. Além disso, o Estado deve também assegurar a sua própria abundância de recursos e zelar pela saúde econômica, garantir a felicidade de seus membros através de direitos sociais e fortalecer-se contra ataques externos.

          No Livro II pauta-se a relação estabelecida com as demais nações regidas pelo princípio de Justiça do direito natural, a promoção de boas relações, a solidariedade internacional, o comércio, a igualdade, respeito aos tratados e da interpretação dos tratados entre outros assuntos.

            As coisas começam a ficar interessantes quando Vattel entra no livro III que discorre sobre a Guerra. Define-a como a perseguição de um direito através da força. Ao soberano cabe declarar o seu início e estabelecer os termos de seu fim, bem como, de promover o recrutamento e a condução de toda a organização necessária para sua consecução, isto é, alistamento obrigatório, recrutamento de cidadãos (membros do clero e ricos, incluso), contratação de mercenários e etc.

E quais seriam as causas de uma guerra justa para esse importante jurista suiço?

          Explica ele que por serem, os atos de guerra, extremamente perniciosos o dirigente deve se pautar por motivos extremamente relevantes para declara-los. O caminho das armas deve ser o último e deve ser percorrido quando não triunfa a luz da razão nos conflitos internacionais.

          Assim sendo, Guerra Justa é uma guerra defensiva, ou seja, quando um Estado sofre uma injúria e para se defender tem de se valer do uso da força para trazer a outra nação à razão. Por exclusão, guerra injusta é quando se dá o contrário.
Cabe notar que o diplomata encara as nações que se lançam as armas sem motivo aparente movidas apenas pelo prazer do conflito são consideradas como  indignas e inimigas do gênero humano.

           Um aparte que fica pouco claro em Vattel é o caso de se é legítimo ou não fazer-se a guerra contra um vizinho que se torna poderoso. Aqui se faz a distinção entre política e justiça e prudência. Uma nação que cresce e torna-se poderosa não faz nada além daquilo que é o seu dever, isto é, prosperar, convém, contudo usar de prudência e agir antes se tal crescimento se assemelha a uma ameaça crescente para o estado ameaçado. O estado ameaçado poderá recorrer à política de confederação como forma de contrabalancear o poder hostil.

          Ainda no livro III, mas no cap. XVIII, surge o tema da Guerra Civil que e definida como uma situação em que um partido cessa de obedecer ao poder soberano e possui forca o bastante para enfrenta-lo criando duas facções em disputa pelo poder dentro da nação. O aconselhamento aqui e o de seguir as mesmas ações que seriam usadas contra outro estado nota-se que as leis comuns da guerra  obedecem ao senso de justiça do direito natural, portanto, humanidade, moderação, retidão e honestidade devem ser observados. Cabe as nações não envolvidas apenas valer se dos bons ofícios com o objetivo de acalmar os ânimos
 
         Encerra o clássico o Livro IV, do restabelecimento da paz e das embaixadas. Em apertada síntese, considera que a paz e o reverso da guerra.  No Cap. V compreende-se o papel que desempenham as embaixadas e os ministros públicos (embaixadores e plenipotenciários)  através da representação soberana em pais estrangeiro como forma de manter um canal de dialogo permanente, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra, entre as nações.O cap. VII explica que os ministros públicos devem ser tratados com as mesmas honrarias que o soberano por serem, em seu mais alto grau, representantes deste sendo as imunidades a eles aplicáveis extensíveis a seus familiares. A logica que prevalece aqui e a de que o direito a um fim leva consigo o direito ao meio necessário. Deste modo a pessoa do ministro adquire caráter de sagrada e inviolável tal qual sua morada no pais estrangeiro. 
  
          Por fim, cabe destacar que Direito das gentes mostra os primórdios do nascimento da ciência do direito internacional colocando vários elementos e contribuindo para o crescimento e o fortalecimento desse instrumento internacional tão importante e tão desrespeitado por algumas potencias.  

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